quinta-feira, 8 de abril de 2010

José Teles escreve sobre Mocinha de Passira




Mocinha destrói corações com sua lábia repentista
Publicado em 08.04.2010


José Teles
teles@jc.com.br

Mais de uma década antes de Leila Diniz escandalizar a sociedade e quebrar tabus, falando palavrões e deixando-se fotografar grávida e de biquíni em Ipanema, no Agreste pernambucano, Maria Alexandrina da Silva, ou Mocinha de Passira, com exceção do biquíni, fazia tudo isso e muito mais: enfrentava, nos anos 50, as rígidas normas nordestinas estabelecidas para as mulheres.

Até hoje ela continua sendo uma das poucas presenças femininas no universo do repente e a única a viver exclusivamente de sua profissão. Mocinha canta hoje, em dupla com Santinha Maurício, a partir das 19h, no Nosso Quintal, em San Martin, no projeto Nosso Quintal em Cantoria, da produtora cultural Roberta Clarissa, que está promovendo desafios de violeiros, uma vez por mês naquele espaço.

Mocinha de Passira, 65, é boêmia, não dispensa um uísque, só namora com quem se afina com ela (palavras suas), fala palavrões e enfrenta os marmanjos taco a taco no baião. Teve muitos homens, mas poucos a tiveram. Casou uma única vez, com o forrozeiro Duda da Passira: “Casei no dia 3 de dezembro, no dia 5 de maio eu já tinha quebrado tudo. O negócio dele era me levar pros forrós a pulso, pra ficar me tocaiando. Ninguém tocaia ninguém. Não deu certo. Um dia amanheci virada, apanhei um cacete que havia lá. A primeira coisa que quebrei foi a sanfona dele. Está manifestada, gritou ele, e foi buscar uns catimbozeiros. Eu avisei que o primeiro que entrasse quebrava no cacete, e expliquei: O problema é que eu vou embora e ele não quer deixar. Quando arrumo minhas coisas, olho para trás e está ele se enforcando. Corri, cortei a corda, e ele caiu em cima do fogão. Fui embora”.

Não foi a primeira vez. Com 16 anos incompletos, fugiu da casa dos pais. Considerado um dos maiores da história do repente, Pinto do Monteiro viu Mocinha cantando em Tamanduá, distrito de Glória de Goitá, e a convidou para ir morar em sua casa, em Caruaru: “Pai deixou. Mas minha mãe, não. O documento que eu tinha era um registro, peguei uma bolsa frasqueira, botei umas coisas, duas calcinhas, e fugi. Fui para o Recife, comprar a passagem para Caruaru. Pinto para mim foi um rei, um pai, meu mestre”.

Mocinha de Passira, aos nove anos, precisou assistir a apenas duas cantorias e meia para aprender o idioma do repente, as diversas modalidades de improvisar. Começou para valer aos 12 anos, quando ganhou uma viola do pai e participou do primeiro baião com o cantador Zé Monteiro. A partir daí se profissionalizou. A princípio enfrentava os cantadores em desafios na sala de sua casa: “A primeira vez que cantei fora foi em Feira Nova, depois saí cantando por tudo que é canto. Não tinha esta história de namorado, não. Meu pai era um homem deste tamanho. Chegava no lugar, batia na porta e perguntava se era ali que morava a pessoa que convidou a menina dele para cantar. Ele sempre comigo”. Pelo talento e certamente por ser mulher, as cantorias de que participava eram-lhe rendosas. “Uma vez, gastei cinco mil, muito dinheiro para a época, dando uma festa. Foram dois dias, com muita comida e bebida. Convidei umas noventa pessoas, vieram bem três mil,” conta Mocinha.

Em várias décadas de cantoria, ela viajou o País inteiro, sempre enfrentando o machismo, desviando-se de cantadas, amor à primeira vista de homens com os quais não afinava, e a misoginia dos colegas de profissão. Feito aconteceu quando cantava uma vez na Praça do Diário, no Centro do Recife. participava de rodas de poesia popular, organizadas pelo embolador Oliveira. Ali, uma vez, o escritor Ariano Suassuna chegou a chorar, emocionado com uns improvisos feitos por ela, conta Mocinha de Passira. Quem quase também chora, mas por outro motivo, foi o repentista Jorge Amador num desafio com ela, cantou os versos: “Se você casar comigo/vai ficar de gravidez/vai acabar parindo/três meninos de uma vez”. A resposta de Mocinha: “Eu posso ter todos os três/são filhos tudo meu/o primeiro é do padeiro/o segundo do Ricardão/o terceiro de Oliveira/nenhum dos três é teu”.

Mas os perigos que enfrentou nem sempre foram agulhadas em versos. Houve também bala na agulha. Numa cantoria em Campina Grande, um delegado de polícia encantou-se por ela, que foi contratada por um empresário para cantar numa churrascaria: “E tinha dois cidadãos ali tomando uma cerveja, de paletó. Quando o rapaz que me contratou chegou, deu boa noite e botou o chapéu na minha cabeça, um de paletó gritou esta menina é minha, já foi dando um tiro. E eu por aqui, para baixo da mesa. Era o delegado de polícia, o que fez aquela palhaçada. Dizendo que eu era dele. A confusão durou uns vinte minutos. Eu ainda fiz a cantoria, mas com aquela moleza, não foi fácil”, lembra Mocinha, que enfrentou um quase sequestro em Chã Grande, planejado por um vereador da cidade, apaixonado. Ela lembra que já era puxada para o carro do político, quando foi salva pelo prefeito da cidade, que foi avisado por um cabo de polícia e veio proteger a repentista. Ela se orgulha de ser o que é: “Nunca tive carteira assinada, porque vivi sempre de minha arte. Fui testada desde cedo, estou aqui porque passei no teste”.

O QUE: CANTORIA DE VIOLA COM MOCINHA DE PASSIRA E SANTINHA MAURÍCIO
ONDE: NOSSO QUINTAL, AO LADO DA SEDE DA CHESF EM SAN MARTIN
QUANDO: QUINTA-FEIRA, 08, ÀS 19h.

2 comentários:

  1. Foi maravilhosa a cantoria!! Parabéns Roberta Clarissa!! Parabéns Santinha e Mocinha!!! Cantadeiras de primeira qualidade.

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  2. Belo relato, admiro, e muito Mocinha da Passira! depois de ler este relato, mais ainda.

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